Pandemias e bodes expiatórios
Ao longo de sua história, a humanidade conheceu algumas pandemias, cujas memórias são de sofrimento e desespero: a peste bubônica aterrorizou a Europa no séc. XIV; o extermínio da conquista espanhola, no séc. XVI, foi ainda mais letal por conta da varíola, fatal para os povos nativos do continente americano; a cólera, espalhada pela insalubridade do séc. XIX; no século XX tivemos o HIV-1 (vírus causador da AIDS), e a chamada gripe espanhola; no séc. XXI a gripe suína e, dez anos depois, a COVID-19, sobre a qual se lê nas redes sociais como "gripe chinesa".
Mas teriam nacionalidade os microscópicos vírus? A gripe espanhola recebeu esse nome porque foi causada por um vírus "espanhol"? Faz algum sentido chamar a COVID-19 de gripe chinesa? Não, e como sabemos disso? Só tem um jeito: entender não apenas sobre a origem das doenças, mas sobre a origem dos discursos sobre a doença durante uma pandemia. Um exemplo: durante cada uma das pandemias que falamos houve uma narrativa, algum discurso que circulava na mídia, no boca a boca.
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Peste bubônica: foi dito que a culpa era das bruxas e dos judeus
Os judeus, por exemplo, foram colocados como bodes expiatórios durante a fase mais aguda da peste bubônica na Europa, entre 1348 e 1351. Na cidade germânica de Erfurt, por exemplo, acredita-se ter havido uma onda de violência contra os judeus, o que levou muitos deles a enterrarem seu patrimônio.
Na Idade Média, as mulheres dissidentes do credo religioso dominante, o Catolicismo, eram consideradas "bruxas". No entendimento da Igreja Católica, era preciso combater dissidências, consideradas ameaças ao seu domínio e poder. Sem a pandemia, hereges e bruxas eram denunciados e julgados. Com a pandemia foram perseguidos e linchados, acusados de serem culpados pelos males que assolavam a sociedade. No entendimento dos fanáticos, se havia peste bubônica era porque havia heresia e bruxaria. O tempo e a ciência provariam que os judeus e as bruxas não estavam por trás da letalidade da peste bubônica. As causas eram outras, como as condições insalubres das cidades medievais, terrenos férteis para a proliferação de ratos parasitados por pulgas que portavam a bactéria
Yersinia Pestis, causadora da doença, a intensa atividade, marcada pelas novas rotas comerciais, que propiciavam amplos deslocamentos de pessoas e mercadorias, da Península Itálica à China
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Ou seja, culpar e atacar "bruxas" ou populações judias pela Peste Bubônica foi um ataque às parcelas minoritárias de cidades e estados.
Isso é algo que ficou conhecido como
bode expiatório. A origem da expressão nos leva até o Levítico, o terceiro livro do Antigo Testamento, onde está escrito: "E Aarão fará chegar o novilho da expiação, que será por ele, e fará expiação por si e pela sua casa; e degolará o novilho da sua expiação" (Lev, 16:11). Aarão, identificado nas escrituras como irmão de Moisés, recebe instruções de Deus para que sacrifique dois bodes: um deveria ter o sangue derramado e o outro enviado para o deserto. Na ordem que recebe Aarão está presente a lógica da expiação (que significa purificar, redimir, reparar): os pecados humanos purificados pelo sacrifício ,ainda que animal. No judaísmo o dia da expiação corresponde ao Yom Kippur, o dia do perdão, em que o sacrifício a Deus é simbolizado pelo jejum.
Gripe espanhola, vírus chinês: a nacionalidade é visível ao microscópio?
Gripe espanhola. Alguém por acaso olhou pelo microscópio e viu o vírus H1N1 defendendo a União Ibérica, enaltecendo a Armada Invencível ou orgulhoso do sucesso de La Casa de Papel? Como atribuir nacionalidade a um vírus?
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O vírus causador da chamada gripe espanhola era próprio de aves mas fez uma mutação e infectou seres humanos. Os primeiros casos datam de março de 1918 e foram notificados numa base militar estadunidense, Fort Riley, nos limites entre Junction City e Manhattan, cidades do estado do Kansas, nos Estados Unidos. Vivia-se a I Guerra Mundial desde meados de 1914. Em 1917 os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha e, no ano seguinte, entre janeiro e agosto de 1918, os norte-americanos enviaram cerca de 2 milhões de homens para combater na Europa. Esse pode ter sido um dos pontos cruciais para a difusão do vírus influenza no continente europeu.
Então por que gripe espanhola?
A Espanha entrou no século XX ainda tentando se recuperar pela derrota na Guerra de 1898 para os Estados Unidos, a Guerra Hispano-Americana, na qual perdera territórios como Filipinas e Cuba. Quando estourou a I Guerra, os espanhóis passavam por um momento econômico difícil e se mantiveram neutros ao longo do conflito.
Aproveitando essa condição de neutralidade, a imprensa espanhola
enviou muitos correspondentes para noticiar os acontecimentos da guerra, entre os quais a disseminação de uma brutal gripe entre as tropas dos países da Tríplice Entente (França, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos) e da Tríplice Aliança (Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano). Amplamente noticiada pela imprensa espanhola, a gripe acabou ganhando nacionalidade: gripe espanhola.
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No Brasil, a H1N1 de 1918 chegou junto com o navio inglês Demerara, que saíra de Londres para Lisboa e, de lá, aportou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. As primeiras notícias sobre a gripe no Brasil foram recebidas de forma diversa: medo, negação e aparecimento de bodes expiatórios. Os efeitos da gripe foram minimizados. Foi dito que não iria se espalhar por conta do nosso clima tropical, oposto ao frio europeu; chamaram a gripe de "limpa-velho", acreditando-se que sua letalidade se restringiria às pessoas de idade avançada, não afetando adultos e jovens.
Em outubro de 1918, os serviços de saúde já operavam no máximo de sua capacidade no Brasil. A letalidade foi altíssima e houve também disseminação de panaceias que teriam o poder de curar a gripe: mel com limão e cachaça (assim nascia um drinque popular, a caipirinha), sal de quinino e ingestão excessiva de aspirinas, o que só fazia aumentar o pânico entre a população – diante de números crescentes de contágios e óbitos. O presidente eleito em março, Rodrigues Alves (que havia governado em 1902-06), muito doente, não conseguiu ser empossado em novembro, tomando posse seu vice, Delfim Moreira, até que novas eleições fossem convocadas. Atribui-se a morte de Rodrigues Alves à gripe H1N1. O primeiro bode expiatório da gripe espanhola no Brasil foi a Bahia: como o navio Demerara tinha chegado à capital vindo de Salvador, o governo federal ordenou o fechamento do porto da capital baiana, considerado um "porto sujo".
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Bom, parece que daqui de onde estamos, duas décadas adentro do séc. XXI, em meio a uma pandemia, a procura irracional por bodes expiatórios continua intensa:
O tuíte acima, publicado em 16 de março de 2020 pelo presidente dos EUA, Donald Trump, diz: "Os Estados Unidos apoiarão energicamente empresas como companhias aéreas e outras que estão sendo particularmente afetadas pelo vírus chinês. Ficaremos mais fortes do que nunca!".
Vírus chinês, isso mesmo, foi o que disse o presidente. Vamos tentar entender melhor.
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A pandemia que o mundo vive atualmente, de COVID-19 (
Corona Virus Disease 2019), é causada pelo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus da síndrome respíratória aguda grave 2), que fez suas primeiras infecções na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019. De início, um surto de pneumonia acometeu funcionários e frequentadores de um mercado atacadista , mas o contágio se espalhou rápido pela China, e em 20 de janeiro o governo chinês reconheceu se tratar de uma situação descontrolada. No dia 22 a OMS - Organização Mundial da Saúde foi a público dizer que o surto descontrolado na China merecia atenção de todo o planeta. Era um alerta. A doença se espalhou com rapidez pela Europa e pelo continente americano em seguida, deixando um rastro de mortes e sistemas de saúde em crise.
O aparecimento de bodes expiatórios tem forte caráter político. A ressurreição de um clima político parecido com o dos tempos da Guerra Fria, de caça às bruxas e paranoias ideológicas fez com que as redes sociais recebessem uma enxurrada de notícias falsas com relação ao novo coronavírus. Uma delas trazia um texto atribuído a Tasuku Honjo, médico japonês, prêmio Nobel de medicina, dizendo que o novo coronavírus fora criado intencionalmente num laboratório chinês e afirmando que o imunologista sabia disso porque trabalhara num laboratório de Wuhan, na China. Na verdade, Honjo só trabalhou nos Estados Unidos e no Japão, onde é professor universitário. A circulação da fake news atribuída a Honjo foi tamanha que a Universidade de Kyoto emitiu uma nota em nome do professor esclarecendo se tratar de uma notícia falsa.
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Um importante jornal acadêmico de pesquisa médica, o
Nature Medicine, publicou um artigo científico em que afirma: nossas análises claramente mostram que o SARS-CoV-2 não é um produto de laboratório ou um vírus manipulado propositalmente. O artigo, em inglês, pode ser acessado por qualquer pessoa por meio do site da
Nature Medicine.
Donald Trump tentará sua reeleição em 2020. Polarizar e criar inimigos lhe pareceu uma estratégia política conveniente, ainda que lastimável. Porque o que esperamos, como cidadãos, em meio a uma das mais graves crises sanitárias da história, é a valorização da ciência, da medicina, da educação e da imprensa que checa fatos e informa comprometida com a verdade. Minimizar os efeitos e a propagação da COVID-19, negá-la, trará consequências ainda mais devastadoras.
Desde março de 2020, crendices e senso comum já atribuíram a cura do vírus à hidroxicloroquina (remédio para o tratamento de lúpus, sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus), à água tônica com quinino e até ao alho, supostamente por sua alta concentração de enxofre. Rejeitar a ciência, descuidar das normas médicas, nesse momento, equivale a pisotear a dor de dezenas de milhares falecidos só no Brasil por COVID-19, além de contribuir para que o descuido generalizado com a doença fortaleça ainda mais a letalidade do novo coronavírus.
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Enfermeiros, entregadores, motoristas de ônibus, trabalhadores do comércio de itens essenciais, funcionários de serviços públicos de limpeza, jornalistas, estão na linha de frente para que consigamos preservar, ao máximo, a vida. A nossa e a dos demais, a vida do outro, da outra. Podemos ajudar nessa luta. Rejeitando bodes expiatórios, checando fatos, estudando sobre fatos da política e atualidades, cuidando da higienização pessoal, de manter o distanciamento social e o isolamento ao máximo que se possa.
Um "bode expiatório" carrega em sua construção preconceitos de origem, condição social ou cor. É um estigma social que carrega a ideia de que, em meio a uma situação de adversidade generalizada, o sacrifício (expiação) de uma pequena parte (o bode do relato bíblico) se revelaria capaz de salvar o todo. Não precisamos de bodes. Precisamos de ciência e educação.
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